quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Quando ressuscitei o meu Papai Noel

Conto de Natal escrito por Maria Angélica Constantino

Bianca sabia apreciar as coisas boas da vida: um bom livro, café, vinho, café, brownie, café, chocolate, café, risoto… Já disse café? Foi segurando um copo de café que fez malabarismo com a outra mão para virar a página. Concentrada na biografia de Leonardo da Vinci, tomou mais um gole daquela bebida que só fazia aflorar ainda mais o prazer por aquela leitura.

O que antes era apenas o nome da rua onde passara sua infância, agora era sobre uma vida. Em poucas páginas Leonardo já era Léo. Sentia-se tão próxima que se imaginava vivendo em outra época, como se fosse sua amiga íntima. E a cada grande descoberta de Léo se enchia de entusiasmo a ponto de várias pessoas que passavam por aquela mesa do Starbucks conseguirem visualizar em suas feições a fascinação que a tomava. Enquanto Bya, como gostava de ser chamada, permanecia totalmente alheia a tudo ao seu redor.

Quer dizer, nem tudo… O rapazinho que lhe servia a bebida a desconcentrava vez ou outra. Deveria ser proibida uma bunda daquelas.

Fechou o livro e o guardou com cuidado na bolsa, entre o kindle e o celular. Riu de si mesma perguntando-se que tipo de louca andava com um leitor digital e um livro físico. Tudo isso seria medo de ficar sem nada para ler?

Voltou caminhando para o escritório absorvendo o sol na pele, amava aquela estação do ano. “Verão, seu lindo!”. Levantou o rosto em direção aos raios solares quando o celular vibrando em sua bolsa a trouxe de volta para o planeta Terra. Era a foto da sua irmã na tela chamando… Com certeza era para lembrá-la do único dia do ano que Bya preferia que não existisse.

Comprimiu com toda a força os olhos e bufou. Puxou o ar e atendeu, mas antes que sua irmã dissesse qualquer coisa, foi logo dizendo:

– Eu não vou!

– Você nem deixou eu falar.

– Tháta, é sério, não adianta. Antes que a gente comece a discutir e a brigar como em todos os anos… – Respirou fundo. – De boa, minha irmã, me deixa em paz, quietinha no meu canto, estou bem assim…

– Ninguém pode estar bem quando prefere passar o Natal sozinha.

– Meu Deus, não faz drama! Porra, é um dia como qualquer outro. Aliás, é um dia pior do que qualquer outro. As merdas dos shoppings ficam todos lotados, as pessoas mal conseguem andar pelas ruas sem trombar em alguém, o trânsito vira uma desgraceira só. Na boa, como um dia desses pode ser bom?

– E o Arthur, como ele vai ficar sem a madrinha dele no Natal?

– Porra! É golpe baixo usar ele para isso, eu fico com ele o ano inteiro, vou recompensá-lo… Tháta, você sabe como é difícil para mim nesse dia. Mais que todo mundo você deveria entender.

– Eu sei, mas é importante reunir a família.

– É uma guerra nas famílias para decidir quem vai passar com quem, daí quando decide é outra guerra para decidir quem vai levar o quê… Daí a vovó chega e ninguém tem tempo pra ela, ficam tão preocupados com a ceia que esquecem de todo o resto… Ano passado só fui pela vovó, mas nesse ano nem ela vai me obrigar. Fora que não tenho nem saco nem dinheiro para tantas confraternizações e amigos secretos. Puta que o pariu, eu odeio amigo secreto! Nunca na vida alguém foi capaz de comprar algo que eu realmente gostasse.

– Não fala isso, o papai fica muito triste com seus comentários, você sabe como ele é. Aniversário da vovó… Sabe, só pensa que sua mãe amava o Natal.

– Pois é, tanto que… Tháta, quer saber a real? Eu não vou atravessar meio Rio de Janeiro só para comer um chester sem tempero da tia Dalva… E ainda ter que aguentar o papai contabilizando quantos copos de vinho eu tomei. Ihh, definitivamente não! E porra, sair daqui do centro a São Conrado só para isso? Passo!

Ouviu a irmã puxando o ar do outro lado da linha.

– Bya, na verdade você terá que ir ainda um pouco mais longe.

– Porra, Tháta! Vai me dizer que resolveram fazer o Natal na tia Dalva? Você tem noção de quanto tempo eu vou gastar daqui até o Recreio? Olha só, inventa que estou com dor de barriga, sei lá… Fala qualquer coisa.

– Bya, mas a vovó…

– No outro dia eu pego a vovó depois dos parabéns e dou uns rolezinho com ela, levo ela à lagoa… Ela pode ficar comigo aqui em casa. Por falar nisso, que dia a vovó chega?

– Meu amor, me escuta só um pouquinho… A vovó não vem esse ano. Então estamos querendo reunir todo mundo para passar o Natal em Londrina.

– Que porra é essa? Não vou nem arrastada… Para eu voltar para Londrina, só se for num caixão, o que vai ser impossível porque você sabe muito bem que quero ser cremada.

– Você não entendeu. A vovó não está bem.

Bianca não tinha alternativa, nem por um milhão de dólares ela voltaria à Londrina, mas pela vovó era diferente… E foi assim que ela acabou dentro de um avião aterrissando naquele lugar.

O carro ia passando pela Santos Dumont, mas ela não reconhecia nada, os vinte anos de ausência causavam estranheza suficiente para não se sentir acolhida em sua cidade natal. Era muito pra ela: véspera de natal, cidade natal, vovó Natalina com a clavícula quebrada… Ia ser um Natal de merda, numa cidade de merda.

Queria odiar mais aquela cidade, mas olhando bem… Estava tão bonita! Muito mais linda do que se lembrava. Toda enfeitada para o… “Argh!”

Em menos de cinco minutos do aeroporto, o Uber virou à direita na rua Leonardo da Vinci e toda a memória de infância estava lá. Algumas casas haviam sido reformadas, mas outras ainda permaneciam lá do mesmo jeitinho.

A família toda reuniu-se na casa em que passou toda a sua infância. Agora a edícula nos fundos, que servira por muito tempo como moradia de sua família, transformara-se num espaço de lazer com churrasqueira. De onde, naquele instante, vinha um barulho infernal de samba.

Porra, não dava para tocar um rock?

No rosto marcado da vovó o sorriso que chegava aos olhos. Abraçou-a com delicadeza e aconchegou-se em seu pescoço… Amava aquele cheiro!

– Que saudade, vó! Como está o ombro?

– Estou ótima, tem um fisioterapeuta maravilhoso cuidando de mim, você precisava ver como ele me tem me ajudado… – A vó contou tudo, desde o tombo até o tratamento.

Na casa da frente, guardou suas coisas no quarto que dividiria com a família de sua irmã e se jogou no colchãozinho de solteiro no chão. Não iria nem se dar ao trabalho de cumprimentar quem quer que estivesse lá nos fundos.

Acordou sentido uma pontada nas costas.

– Bya, Bya! Hei, filha, acorda!

– Hummm, pai?

– Vem, acorda! Todo mundo já está praticamente pronto para ir à igreja, sua irmã entrou aqui com o Jorge e o Arthurzinho, tomaram banho e você nem viu.

– Eu precisava dormir, estava muito cansada. – Bocejou.

– Tudo bem, agora vamos porque sua vó já está impaciente lá na sala.

– Porra, pai, fala que não conseguiu me acordar! – Abriu ainda mais a boca para bocejar. – Eu não quero ir à igreja, Porra!

– Não fala palavrão que sua vó não gosta. Não se esqueça que você não está no Rio de Janeiro, aqui “porra” não é vírgula. E se você não pular desse colchão e se trocar pode esperar que sua vó vem aqui te arrastar, mesmo com a clavícula quebrada.

Enfiou a cara no travesseiro com vontade de gritar todos os palavrões… Mas com a vovó não tinha saída… Banho tomado e roupa trocada, foi parar com sua família numa igrejinha que não pisava há muitos anos. Entrou toda sem jeito, foram todos se sentar nos primeiros bancos, mas Bya ficou no fundo da igreja com a desculpa de cuidar do pequeno Arthur.

Uma criança aproximou-se, Bya colocou o Arthur no chão e se agachou para brincar com eles.

– Oiii, como é seu nome?

– Maria Clara.

– Que nome lindo! Eu me chamo Bya e esse é o Arthur.

A garotinha sorriu e o Arthur deu dois passinhos mais perto dela. Uma loura aproximou-se.

– Vem Maria, vamos sentar lá na frente.

– Deixa eu brincar com ele mamãe?

– Olha só, pode deixar ela aqui! – Bya olhou para a loura. – Eu cuido dela.

– Você não está me reconhecendo não é, Bianca? Sou Eliane, fui sua vizinha.

– Ah, acho que estou lembrando de você.

Na cabeça de Bya veio um turbilhão de imagens. “Papai Noel não existe, sua mãe está mentindo para você, – Bya segurava o braço da amiguinha – é ela quem tira o capim de manhã e fala que foram as renas do velhote que comeram. Mas é tudo mentira! Papai Noel não existe!” Bya fora arrasta pela avó enquanto repetia aos gritos “Papai não existe!” e a vizinha puxava a filha para dentro do portão.

– Pois eu nunca te esqueci, lembro de você principalmente no Natal. – Eliane inclinou-se e sussurrou no ouvido de Bya. – Você matou meu Papai Noel, mas não vai matar o da minha filha. Portanto, fique longe dela.

– Nossa, mas você ainda não superou isso? Ah vá! Cresce, mulher! Eu não ia falar nada não.

– Por via das dúvidas, não vou arriscar o Natal da minha filha. – Eliane forçou um sorriso. – Vem filha, vamos sentar lá na frente junto com pessoas civilizadas.

– Porra, quanta ignorância! Por isso que não gosto de vir à igreja. A desgraçada conseguiu piorar meu dia! – Resmungou.

– Piolou mo dia, Dinda! – Arthur repetiu.

Era só que faltava, já começava a influenciar o moleque.

– Não, Arthur! Não piorou nada. Vamos lá com a mamãe!

Bya pensou que antes de matar o Papai Noel de alguém a vida já tinha se encarregado de matar o dela. Deixou o garoto com a irmã e bateu em retirada. Precisava respirar um pouco… Subiu as escadas na lateral da igreja e encontrou um caminho para o que parecia uma mini capela, talvez um oratório. Era gracioso, as portas duplas de madeira e a parede de pedras envolta com heras que subiam até a cruz no telhado davam um ar europeu… A porta estava destrancada e seu interior estava vazio, um pouco de silêncio e paz era tudo do que precisava.

O lugar era bem pequeno e em formato circular, mas muito aconchegante. Tinha um cheiro muito peculiar, lembrava daquele cheiro… Remetia à infância… De onde era aquele cheiro? Uma pequena mesa no centro, três janelas compridas na vertical de cada lado e um crucifixo na parede dos fundos. Sentiu muita paz! Trancou a porta atrás de si e sentou-se no banco. Apenas a luz vermelha na parede quebrava a penumbra.

Puxou as pernas para si sobre o banco e ficou em posição fetal se abraçando. Fechou os olhos e inspirou fundo. Lembrou-se de onde era aquele cheiro e lágrimas escorreram por sua face. Era o cheiro…

A porta se abriu. Bya assustou-se.

Não era possível vê-lo muito bem nas sombras, mas era o perfil de um homem.

Ela enxugou as lágrimas.

– Desculpe, a porta estava aberta. – Endireitou-se rapidamente no banco.

– Não tem problema, fique quanto tempo precisar… Eu só vim depositar alguns pedidos dos fiéis. – Ele tinha alguns papéis nas mãos.

Ela enxugou mais algumas lágrimas que teimavam em descer. Ele sentou-se no mesmo banco, mas não muito perto. Estava escuro, não era possível ver seu rosto. Com certeza era o padre auxiliar que sua avó tinha comentado no caminho para a igreja.

– Dia difícil?

– Um pouco. – A voz de Bya saiu quase inaudível.

– Esse lugar ajuda muito… Quando eu não estou bem eu venho aqui.

Conhece a história desse oratório?

– Não, não sabia que ele tinha uma história.

– Fiz uma viagem para Israel com Padre Beto e alguns fiéis… Num dia no café da manhã ele me disse que tinha sonhado com um oratório onde nos sentíssemos no útero da mãe. Eu disse a ele: vamos construir esse lugar… E cá estamos nós no Oratório Nossa Senhora do Silêncio… – Bya sentiu um arrepio no estomago que percorreu todo o seu corpo. Ele continuou falando, mas Bya já não ouvia mais nada. Começou a chorar compulsivamente.

– Me desculpe! Aconteceu alguma coisa? Está tudo bem?

– É que… – Bya limpou o rosto e com a voz embargada continuou. – É que eu senti um cheiro aqui dentro que não sentia há vinte anos.

– É mesmo? Que cheiro?

– O cheiro da minha mãe que se foi. Hoje é aniversário da morte da minha mãe. Ela morreu na véspera de Natal. É muito difícil para mim… é um dia que quero esquecer. – Agora que estava conversando com um padre ia aproveitar para por tudo para fora. – Meu pai até se casou de novo, teve minha irmã, depois se separou, mas de alguma forma seguiu em frente. Já eu, não… Eu não consigo, eu não quero… Não quero amar e depois perder tudo. Eu prefiro ficar sozinha… Minha irmã me chama de antissocial, mas eu não consigo funcionar de outro jeito.

– Eu te entendo.

Ele levou o polegar em seu rosto e enxugou suas lágrimas.

– Era para ser o útero da mãe, lembra? Então chore, chore tudo que tiver vontade, mas pensa que de alguma forma ela ainda cuida de você, que você está protegida aqui no útero dela. Eu sei que não é fácil, mas encontre forças para lutar por sua felicidade. É o que eu mesmo faço…

– Aí estão vocês! – Era sua vó na porta.

Eles saíram do oratório e agora o padre tinha um rosto.

E valha-me Deus! Aquilo só poderia ser alguém lá em cima brincando com sua cara. Tudo bem mandar um padre para a ajudar num momento difícil, mas precisava ser uma tentação? Era o padre mais lindo que já tinha visto na vida. Inferno, mais essa justo no natal? Vá tomar…

– Doutor Henrique, o que achou da minha neta?

Bya arregalou os olhos e nem conseguiu disfarçar o espanto. Segurou-se para não dizer seu palavrão favorito.

Era oficial, Papai Noel existia!

– Feliz Natal, vovó!